Mês da Bíblia 2020: Deuteronômio – Escuta, Israel!

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Este ano, a Igreja no Brasil vai aprofundar o livro do Deuteronômio. O lema é inspirador: Abre tua mão para o teu irmão (Dt 15,11). É um livro rico em reflexões morais e éticas, com leis para regular as relações com Deus e com o próximo. Destaca-se no livro a preocupação de promover a justiça, a solidariedade com os pobres, o órfão, a viúva e o estrangeiro.  Como último livro da Torá ou Lei sagrada, o nosso Pentateuco, o Deuteronômio pode ser definido como o discurso de despedida de Moisés, ou melhor, o seu testamento, no qual ele transmite às novas gerações uma norma de vida a ser seguida com a entrada na Terra Prometida. Não é, então, meramente uma memória do que foi vivido, mas traz recomendações que não poderão ser esquecidas quando o povo estiver na Terra, que partem da convicção de que a posse da terra não é resultado somente do esforço de Israel, de suas lutas, como também é um dom concedido por Deus, por ser fiel às promessas feitas aos patriarcas.

O Deuteronômio é o livro do Antigo Testamento mais citado nos escritos do Novo Testamento, mais de 200 vezes! Porém, como livro, não é muito conhecido. Conhecemos trechos, importantes, sem dúvida, mas sempre trechos. É com trechos do livro do Deuteronômio, que Jesus vence as tentações do demônio no deserto:

- Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (Dt 8,3; Mt 4,4);

- Não tentarás o Senhor teu Deus (Dt 6,16; Mt 4,7);

- Ao Senhor teu Deus adorarás e só a Ele prestarás culto (Dt 6,13; Mt 4,10).

Nesse sentido, o primeiro desafio será, portanto, CONHECER a grande proposta do livro que hoje temos em mãos. Para usar sua própria linguagem: Ouve, ó Israel: YHWH nosso Deus é o único YHWH! Portanto, amarás a YHWH teu Deus com todo o teu coração, com toda tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! Tu as inculcarás aos teus filhos, e dela falarás sentado em tua casa e andando em teu caminho, deitado e de pé. Tu as atarás também à tua mão como um sinal, e serão como um frontal entre os teus olhos; tu as escreverás nos umbrais da tua casa, e nas tuas portas (Dt 6,4-9).

No rastro dos verbos e expressões – colocar as palavras no coração, as inculcarás aos teus filhos –, vem à mente outras imagens ricas que insinuam um segundo desafio: que a Palavra chegue e toque o coração. Citemos, como exemplo, o profeta Ezequiel (3,2-3): Eu abri a boca, e ele fez-me comer o rolo. Depois disse-me: Filho de Adão ou filho do homem, alimenta teu ventre e sacia as entranhas com este rolo que eu te dou. Eu o comi, e era doce como mel na minha boca.

Essa imagem da Palavra como mel é muito presente e conhecida nos textos bíblicos. João Batista se alimentava no deserto de gafanhotos e mel silvestre. Quão saborosas são para mim vossas palavras, mais doces que o mel à minha boca, canta o salmista (Sl 118,103). Em Israel, as crianças judias, quando começam a aprender a leitura dos textos bíblicos, os rabinos escreviam o alfabeto não com tinta nos pergaminhos/papel, mas com o mel. Então, as crianças lambiam-nos para recordarem que a Palavra é doce como o mel. Orígenes (185-254), grande comentador da Bíblia dizia: A Bíblia é como uma colmeia com vários favos de mel, nós cristãos, como abelhas devemos nos alimentar e saborear esse mel com verdadeira fome.

Essas imagens é um modo de indicar a importância de praticar a escuta saborosa da Palavra. No Evangelho de Lucas se diz que Maria guardava, meditava todas estas coisas no coração (2,41-51). A Bíblia não é apenas para ser lida, mas, sobretudo para ser orada!

Contudo, isso se faz na lentidão, exige tempo, exercício de leitura da Palavra, de querer aprofundá-la como o pão de cada dia. Há um texto chamado A Lentidão, de Milan Kundera (1929, idade 91 anos) onde se diz: Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa alguma, nem de si mesmo. A pressa parece que é sinônimo de eficácia, mas, na verdade, é sinônimo de esquecimento, tudo passa no mesmo galope com que entra. Já a demora, a lentidão, o tempo gasto é sinônimo de memória, de criar raízes, fazer morada, lentidão tem tudo a ver com sabor do que se come, se escuta, se lê, se faz! Não é o muito saber que sacia e satisfaz o coração, mas sim sentir e saborear internamente todas as coisas. Sentir e saborear.

Além do mais, na Bíblia há uma linguagem que, para ser entendida, precisa perceber o contexto: se você pegar uma placa escrita silêncio e sair andando pela rua com essa placa na mão, alguém poderá pensar: está doido, está fazendo graça, faleceu alguém, ou seja, ninguém entenderá nada porque naquele contexto – rua, lugar público, geralmente há barulho. Agora você entra no hospital e na recepção vê uma placa escrita silêncio, aí você entenderá.  Não mudou a placa, o que mudou foi o contexto, houve a mudança de contexto.

Para ler o texto com inteligência é necessário, então, saber o contexto. Quando foi escrito o livro do Deuteronômio, o ‘autor’ imagina e pressupõe que os leitores de qualquer época saibam o contexto. O texto é o que autor dá de presente para nós leitores, o contexto é o que ele acha que nós sabemos e damos de presente a ele: o encontro do texto com seu contexto ajuda-nos a extrair a essência do texto e até melhorá-lo, atualizá-lo, enfim. No livro do Deuteronômio, por exemplo, há textos violentos (13,2-19; 16,21-17,7;...) que deverão ser interpretados e situados em seus contextos. Além disso, nossa chave de leitura deve ser sempre Jesus: Ouvistes o que foi dito; eu, porém, vos digo ... (Mt 5,21-48). Alguém já disse que Jesus é um músico, ele conserva as palavras da Torah, mas muda a melodia.

Sugestão: Poderíamos todos conhecer e ler o livro do Deuteronômio ou alguns textos durante o mês, auxiliados pelos párocos por meio de áudios, vídeos, enfim....

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