“Fratelli Tutti” – Papa Francisco lança nova encíclica

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Fratelli Tutti
Carta Encíclica do Papa Francisco

Dom Lindomar Rocha

Todos irmãos, é com esse título que o Papa Francisco chama à atenção do mundo neste difícil momento que atravessamos. Composta por uma robusta introdução e seguida de oito (08) capítulos, o Papa inicia falando da fraternidade universal e descreve de maneira existencial o caminho reflexivo que o fez chegar a este texto. Diz o Papa:

As questões relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações. A elas me referi repetidamente nos últimos anos e em vários lugares. Nesta encíclica, quis reunir muitas dessas intervenções, situando-as num contexto mais amplo de reflexão. Além disso, se na redação da 'Laudato si' tive uma fonte de inspiração no meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que propunha com grande vigor o cuidado da criação, agora senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Dhabi, para lembrar que Deus «criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos»…., na minha linguagem própria, acolhi também numerosas cartas e documentos com reflexões que recebi de tantas pessoas e grupos de todo o mundo (5).

As reflexões mostram um avanço significativo na tentativa de ouvir a todos, desde o ecumenismo com Bartolomeu, o diálogo inter-religioso com Ahmad Al-Tayyeb, até a universalidade dos povos, através da contribuição de pessoas e grupos espalhados pelo mundo. O desejo de fazer um diálogo universal é descrito logo a seguir quando se afirma: “Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” (6).

Pessoas de boa vontade é aquele grupo reconhecido a partir do Vaticano II, e que, embora não professem a mesma fé que a gente, e, as vezes até nenhuma fé, está disposto a colaborar para a construção de um mundo melhor, e cujos valores não se opõem ao Evangelho.

A atualidade da Fratelli Tutti se faz ver na inclusão do tema da pandemia que atravessamos neste momento e é alargado para uma compreensão de que o que fizemos até agora não é suficiente para a superação deste mal. Como Francisco mesmo já vinha se expressando, estávamos doentes antes da pandemia. Por isso mesmo “Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade (7).

Terminada esta introdução, tem início uma analise detalhada do nosso tempo. O capítulo I, intitulado: As sombras de um mundo fechado, faz ver como chegamos a um momento crucial na história humana, que como tal só poderá tomar outra direção se contar com a ajuda de todos.
O mais grave agora, faz ver a Encíclica, é que o mundo não está sendo projetado para todos. O que se verifica é uma luta sem fim e

Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna sinônimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada? Hoje, um projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a humanidade soa como um delírio. Aumentam as distâncias entre nós, e a dura e lenta marcha rumo a um mundo unido e mais justo sofre um novo e drástico revés (16).

Aqui nos lembra a dificuldade maior contra o projeto da fraternidade universal: a luta disseminada que impede trabalharmos conjuntamente para o bem de todos. E assim «nascem novas pobrezas». Uma pobreza que se espalha em todas as direções e até os confins do mundo.

Fica a alerta, que alguns de nós são as principais vítimas de um mundo desumanizado, “Com efeito, «duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos»”(23).

Frente a tantos males, que parecemos incapazes de superar de uma vez por todas, parece que vivemos uma 3ª. Guerra Mundial em pedaços, mas que vai fazendo tantas vítimas como uma guerra inteira. E, mesmo quando “uma tragédia global como a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos” (32), não fomos capazes de entender essa realidade gritante, isto é, que “ninguém se salva sozinho, que só é possível salvar-nos juntos”.

Um acontecimento muito grave, mas que agora é exposto pela autoridade do Papa, é o fato de vivermos, atualmente, num universo político onde cada um cede os seus valores fundamentais em troca de auto favorecimento ou de suas ideologias, tornando-se muitas vezes desrespeitosas com todos. Foi essa atitude que, “permitiu que as ideologias perdessem todo o respeito. Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune” (45).

Esses acontecimentos, que temos experimentado de perto, ataca os direitos humanos, a igualdade universal e a diversidades de povos, pode ser dita sem meias palavras em nossas eleições passadas, inclusive por pessoas que estimamos. Entretanto, muitos destes desrespeitosos também são vítimas de um mundo que lhes pegou de sobressalto.

Não se pode ignorar que, pois,

há interesses econômicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão subtis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático. O funcionamento de muitas plataformas acaba frequentemente por favorecer o encontro entre pessoas com as mesmas ideias, dificultando o confronto entre as diferenças. Estes circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios (45).

Mas porque vivemos sobre o olhar vigilante de Jesus Cristo, Senhor de tudo, todas as dificuldades que enfrentamos terão sempre uma esperança suficiente garantida para nos colocar em marcha. “Apesar destas sombras densas que não se devem ignorar, nas próximas páginas, desejo dar voz a tantos percursos de esperança. Com efeito, Deus continua a espalhar sementes de bem na humanidade” (54).

O capítulo II, Um estranho no caminho, se inspira numa das mais belas histórias contadas por Jesus e diz respeito a proximidade e a fraternidade universal. Uma história que encontramos no Evangelho de Lucas, e nos narra o seguinte episódio:

Levantou-se, então, um doutor da Lei e perguntou [a Jesus], para O experimentar: “Mestre, que hei de fazer para possuir a vida eterna?” Disse-lhe Jesus: “Que está escrito na Lei? Como lês?” O outro respondeu: “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. Disse-lhe Jesus: “Respondeste bem; faz isso e viverás”. Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: “E quem é o meu próximo?” Tomando a palavra, Jesus respondeu: “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: ‘Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar’. Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?” Respondeu: “O que usou de misericórdia para com ele”. Jesus retorquiu: “Vai e faz tu também o mesmo”» (Lc 10, 25-37).

O Papa Francisco quer partir daí. Ensinando que o mundo não prosperará se cada um olhar apenas para os seus próprios interesses. Interesses estes que são legítimos muitas vezes, como desejar o bem para a família, para os amigos, para aquele que estimamos, mas sem universalizar esse amor, terminaremos por naufragar, inclusive com aquele para quais queremos o bem.

O amor só frutificará se for direcionado em todas as direções. Ele, o amor é frutuoso, nos inquieta e faz com que “procuremos os outros e ocupemo-nos da realidade que nos compete, sem temer a dor nem a impotência, porque naquela está todo o bem que Deus semeou no coração do ser humano” (78).

Surge aqui a ideia do outro mais outro. O Judeu e o Samaritano são estranhos e adversários culturalmente e religiosamente, entretanto, isso não foi empecilho para que o segundo o socorresse, pois reconhece que a vida do seu irmão era sua responsabilidade, ao contrário dos próprios compatriotas do homem ferido.

Um mundo de samaritanos inclui todos aqueles que encontramos pelo caminho. Qualquer tipo de caído é o irmão que precisa de socorro. E mais que isso, é preciso também incluir outros nesta rede fraterna, continua o Papa:

O samaritano procurou um estalajadeiro que pudesse cuidar daquele homem, como nós estamos chamados a convidar outros e a encontrar-nos num «nós» mais forte do que a soma de pequenas individualidades; lembremo-nos de que «o todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas».60 Renunciemos à mesquinhez e ao ressentimento de particularismos estéreis, de contraposições sem fim que encontramos (78).

Essa última intuição é forte na Encíclica, e é também a sua pedra de toque, porquanto é o principal desafio apresentado, fazer com que a humanidade reconheça essa sua fraternidade comum.

O capítulo III, Pensar e gerar um mundo aberto, lembra uma verdade muito cara à teologia clássica e a moral: a realização da pessoa só é possível quando se dirige na direção do outro. Por isso, é dito logo na abertura: “O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude «a não ser no sincero dom de si mesmo» aos outros” (87).

Valores primordiais são relembrados para garantir a propagação do sonho da fraternidade e sua conformidade com o que todos esperam. Mas, lembra o Papa, que eles são frutos de muito trabalho, especialmente quando diz:

Os valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos desde a mais tenra idade. (…) Também os agentes culturais e dos meios de comunicação social têm responsabilidades no campo da educação e da formação, especialmente na sociedade atual onde se vai difundindo cada vez mais o acesso a instrumentos de informação e comunicação» (114).

A formatação que dá sentido e orienta estes valores é o amor. Sem ele “As pessoas podem desenvolver algumas atitudes que apresentam como valores morais: fortaleza, sobriedade, laboriosidade e outras virtudes. Mas, para orientar adequadamente os atos das várias virtudes morais, é necessário considerar também a medida em que eles realizam um dinamismo de abertura e união para com outras pessoas” (91).

O amor, portanto, é a chave de leitura para superar o distanciamento e é marca de uma retidão moral que não se perde em infrutíferos moralismos, mas gera uma abertura para o outro, para o acolhimento e a fraternidade.

No capítulo IV, Um coração aberto ao mundo inteiro, a dinâmica do Samaritano continua valendo, mas agora é desafiada a ultrapassar as fronteiras, até mesmo dos conflitos, superando o terrível inimigo da humanidade, que é a indiferença.

O tema do imigrante orienta este discurso e leva ao aprofundamento da reflexão entre respostas inocentes para o problema e um olhar sobre a realidade dos fatos. Essa complexa realidade de todos os tempos é observada pelo Papa:

Quando o próximo é uma pessoa migrante, sobrevêm desafios complexos. O ideal seria, sem dúvida, tornar desnecessárias as migrações e, para isso, o caminho é criar reais possibilidades de viver e crescer com dignidade nos países de origem, a fim de se poder encontrar lá as condições para o próprio desenvolvimento integral. Mas, enquanto não houver sérios progressos nesta linha, é nosso dever respeitar o direito que tem todo o ser humano de encontrar um lugar onde possa não apenas satisfazer as necessidades básicas dele e da sua família, mas também realizar-se plenamente como pessoa. Os nossos esforços a favor das pessoas migrantes que chegam podem resumir-se em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Com efeito, «não se trata de impor do alto programas assistenciais, mas de percorrer unidos um caminho através destas quatro ações, para construir cidades e países que, mesmo conservando as respetivas identidades culturais e religiosas, estejam abertos às diferenças e saibam valorizá-las em nome da fraternidade humana» (129)

Há, em relação à prática perversa da migração, elementos internos que levam alguns indivíduos a um “narcisismos bairristas que não expressam um amor sadio pelo próprio povo e a sua cultura. Escondem um espírito fechado que, devido a uma certa insegurança e medo do outro, prefere criar muralhas defensivas para sua salvaguarda” (146). Uma prática que não se pode desconhecer, de pessoas que não gostam do seu próprio país e do seu próprio povo, e vivem da admiração alheia.

A tentativa de “estimular uma sadia relação entre o amor à pátria e uma cordial inserção na humanidade inteira” está ao centro das preocupações de Francisco, numa dialética de não oposição entre os indivíduos, a nação e as nações.

Os demais capítulos serão comentados na próxima reflexão.

Capítulo V, A política melhor.
Capítulo VI, Diálogo e amizade social.
Capítulo VII, Percurso dum novo encontro.
Capítulo VIII, As religiões ao serviço da fraternidade.

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